Rainbow Jambaya - Ayuan Tepuy - Venezuela

Ouvi sobre os tepuis pela primeira vez com o venezuelano  Jose Luis Pereyra enquanto revezávamos a boleia descendo a ruta 40 rumo a El Chaltén.  Jose gostava de  falar de física quântica e escalada nos Tepuis. Das escaladas entendi muita coisa.  Jose contava das suas experiências no Ayuan Tepui, das dificuldades e beleza da selva, do exótico e duro de  escalar aquelas paredes. Criei em minha mente uma imagem fascinante do que seria aquele lugar. Quando surgiu a ideia concreta de ir escalar o Salto Angel pelo convite do Waldemar, me enchi de expectativa e busquei informação sobre as vias existentes.

A primeira ascensão da abóbada do Salto foi lograda por Jesus Galvéz e Adolfo Medinabeitia em 1990 — ”Ruta Diecta” 1150mt 6b A4 —, concluíram a via em 21 dias de escalada. A segunda ascensão foi em 2005. Após duas tentativas fracassadas, John Arran e seus seis companheiros puderam concluir, em 19 dias, a escalada do Salto. Batizaram de “Rainbow Jambaia” — 1050mt  E76c ou F( 7c+  expo!) — com variantes da via de Galvez, livraram todas as cordadas, algumas a vista, outras trabalhando ou pré equipando.  Um feito incrível sacar toda aquela parede em livre sem nenhuma proteção fixa. Galvez havia batido uma única cheville em sua ascensão, as únicas chapas deixadas pelos ingleses estão nos platôs 3 e 4 para pendurar os portaledges.

Em 2006 um grupo de 6 escaladores liderado pelo francês Arnaud Petit repetiu a via inglesa em 16 dias de escalada.  Pelo croqui de Arnaud Petit a maior parte das cordadas são expo!super expo! ou hiper expo! com o grau variando do 6b ao 7c+, muitas de terreno quebradiço e molhado.... um panorama pouco animador.

Nosso grupo era formado pelo Waldemar Niclevicz, que organizou toda logística, Sergio Tartari, Edmilson Padilha, Valdecir Machado, Orlei Junior, eu e o venezuelano Alfredo Rangel (Yupi). Partimos de Caracas em um ônibus até Ciudad Bolivar e de lá três aviões Cessna até a aldeia de Kamarata. Foi a primeira visão do Salto Angel, os tepuis estavam meio tapados pelas nuvens, o Salto surgindo da nuvem caindo no buraco escuro da gran bóveda, uma visão magnífica e pouco acolhedora. Pousamos em Kamarata, uma aldeia Pemon, seguimos direto para a curriara descer o rio Akanan. As curriaras são grandes canoas de um só tronco do laurel, resistentes e rápidas. O rio estava bastante baixo, por três vezes tivemos de descarregar o barco para transpor as corredeiras. O motor do barco quebrou e esperamos o resto do dia pelo reposto. No segundo dia entramos no rio Carrao, no terceiro dia subimos o rio Churun, que desce a garganta do diabo, onde está o Salto Angel. A subida foi bem difícil, era preciso aliviar o peso do barco e empurrar a todo instante, cada corredeira era uma roubada. Chegamos à tarde na Isla Raton e nos instalamos em um dos acampamentos para turistas.

Kerepakupai Meru é  como os indígenas Pemon chamam o Salto Angel. O índios Pemon viviam na costa do caribe, com a chegada dos conquistadores fugiram entrando para o interior das selvas, atingiram os Tepuis e se adaptaram a viver neles. A água dos rios tem cor de guaraná e poucos peixes, nas matas poucos frutos e também uma fauna pouco abundante. Vimos muitas bromélias tigre exuberantes, os beija-flor são freqüentes e mesmo na parede nos faziam visitas. O Salto Angel é bastante visitado por grupos de turistas que sobem até um mirante, alguns descem até as piscinas do rio e logo voltam ao acampamento, jantar e dormir nas redes para no outro dia cedo descem de volta à Canaima. Alguns turistas chegam de helicóptero e pousam no topo do Tepui ou na piscina do mirador. O transito de aviões pequenos e helicópteros é constante, perturbando um pouco da paz do lugar. O Salto é incrível, a água do rio Kerepakupai  despenca da borda do Tepui para um salto de quase mil metros; quando chove surgem muitas outras cachoeiras. Na base da gran bóveda a força da água gera correntes de ar, um vento forte com água em suspensão se espalha pela base do Salto. Com pouca água o salto se transforma em um véu de nuvem, a água que cai se transforma em jorros que se desfazem transformando em vapor que desce devagar ao sabor do vento. Uma transformação constante de água pulverizada. O rio que vira nuvem para 1000 metros mais abaixo virar rio novamente. Observar a queda desta água era como um colírio refrescante para os olhos.

Montamos o acampamento base na ”cueva de los espanholes”, um grande bloco na borda da bóveda. Montei minha rede no alto e os mosquitos me devoraram à noite, terror e pânico na madrugada. Transportamos tudo até a base da via, um pedreiro liso constantemente molhado pela cachoeira. Tratamos de ser rápidos  e começamos a escalada, enquanto três escalavam os outros carregavam equipo, coletavam água ou puxavam os petates  de 50kg ou mais.

A bóveda que o salto cavou forma um negativo imenso com uma seqüência de tetos no início, na metade e outra no final, uma parede medonha, maluca, super vertiginosa, assustadora. Na base, o respingo do salto molha tudo e dependendo da direção do vento molha ainda mais.

Na segunda cordada, um E6, o Ed teve uma queda e uma corda acabou danificada, ficamos apreensivos, pois tínhamos mais 30 cordadas pela frente, passamos a usar cordas duplas de 9,2 que resistiram até o fim da escalada. Revezávamos na ponta da corda alternando as duplas a conhecer a rocha, enquanto dois ou três escalavam os outros trabalhavam na subida do material. Tínhamos 220 lt de água e cerca de 300 kg de material, foi uma trabalho duro puxar tudo para cima. Seguiram cordadas de E3 e E5 com chaminés e muitos blocos suspeitos.

A partir da sétima cordada a rocha mudou do negro para laranja.  Sergio seguiu buscando pela esquerda uma longa horizontal super exposta e incerta, algumas paradas eram  difíceis de montar. Val seguiu em artifo-livre, lhe escapou um piton, caiu meio mal e chocou pés e um pouco a cabeça; teve sorte: tudo ok.  No outro dia saímos com tudo para 15 dias na parede sem retorno à base. Sergio tocou a cordada que faltava e chegamos ao campo 3, um confortável platô com  duas chapas para os portaledges e bom espaço. O visual do Salto era magnífico. A petateada foi  trabalhosa, com pêndulos a se controlar e bicos afiados para as cordas. 

A partir do campo 3 seguem boas fissuras de rocha mais sólida, me tocou esta bonita cordada de E5 apenas exposta. Vez do Sergio que seguiu buscando pela esquerda com um exposto e bonito lance no final da cordada, uma laca grande desviada por agarras. Val seguiu  com lances fortes em livre e algumas colocações boas, mas igualmente exposta. Waldemar fazia as imagens registrando toda a escalada. Alfredo Yupi nos preparava refeições com deliciosas arepas e trabalhava duro na subida dos petates.

No Salto Angel, pela manhã, o sol projeta muitos arco-íris, alguns chegam a fechar toda a boca da bóveda, esta boca, um buraco enorme que a água cavou por milhões de anos. Com o tempo aberto o sol pegava forte, tínhamos poucas horas de sol até as 10-11:00 h, mas em geral a sombra era bem vinda e a escalada se tornava bem agradável. A parte central da parede tem um grande negativo com tetos e uma falha decomposta, chamado por Jesus Galvez de “Derribos Arias”  (área de demolição) estávamos um pouco apreensivos com o que iríamos encontrar ali. Galvez passou pela falha decomposta em artificial A3 e A4, John Arran seguiu pela esquerda  pelos tetos e diedros tirando em livre E7 6c. O sistema decomposto não nos atraiu, seguimos a linha dos ingleses em  artifo-livre com lances delicados e expostos, a incerteza da pedra não encoraja a escalada livre, porém muitos lances eram obrigatórios.

As jumareadas se tornaram incrivelmente aéreas e a partir deste ponto se tornava muito complicada uma retirada, não havíamos deixado cordas fixas em nenhum ponto. Escalávamos com calma sob a rocha deteriorada com blocos soltos e cantos super afiados, um perigo para as cordas em caso de queda. Machucar-se neste lugar seria um problema, cordadas tensas que exigiam toda concentração com um buraco enorme sob os pés.

Chegamos ao Campo 4, um pequeno platô com duas chapas para os ledges. Mudamos o acampamento novamente. O convívio se tornou mais apertado com espaço justo para a cozinha e nada podíamos caminhar. O visual da cachoeira tomou nova forma, a transição da água de líquida para gasosa era linda de se ver. No horizonte, duas cachoeiras enormes na vastidão da selva, o rio Churun com muitos rápidos vem de dois vales principais. Terreno selvagem de difícil acesso. Ed tocou a cordada que sai do campo 4, o começo em livre entrando logo em artificial delicado, escalada visual com a cachoeira ao fundo iluminada pelo sol da manhã. A partir da cordada 22 as vias se dividem: Galvez  tocou pela esquerda desviando uma placa central compacta, os ingleses foram para a direita passando pelo campo 5, um bom platô. As opções não eram evidentes e acabei me metendo em um diedro com muita pedra solta, tive de limpar algumas fendas, por ai ninguém havia passado, cheguei ao campo 5 com os olhos cheios de terra, ainda mais sujo e sedento.

Mudamos ao campo 5 a 700 m verticais da base, estávamos menos protegido das chuvas e goteiras. O céu que já vinha ficando mais carregado começou a formar chuvas que passavam ao longe, não tardou a chegar até nós, o Salto cresceu com a chuva da noite, novas quedas surgiram, o Salto se transformou em uma grande coluna de vapor como uma fábrica de nuvens.

Sergio e Ed buscaram uma conexão com a via dos espanhóis fazendo uma longa e trabalhosa horizontal à esquerda, víamos cordas velhas em um sistema de fissuras, voltaram depois de constatar que não havia um sistema atraente pelas fissuras. A partir do campo 5 a linha dos ingleses seguia reto com 7b obrigatório, exposto e nada convidativo. Mais à direita, cerca de 20 metros, um diedro perfeito de 60 metros levava até um platô pequeno comum à via inglesa. Foi nossa opção. Acabamos abrindo uma variante de duas cordadas de excelente qualidade.  

Sentado no platô observando a beleza do ambiente em nossa volta, a água do Salto caindo lentamente ao vazio, os  arco-íris se formando pela manhã, sabia que em alguns dias estaríamos no topo e a escalada chegaria ao fim, meus amigos já estavam ansiosos por este momento, eu desfrutava cada instante e queria que não acabasse, como um sonho bom.  Já estava bem  acostumado à nossa rotina na parede, quando me tocava  a ponta da corda sim tinha um belo desafio e punha todo meu empenho, cada movimento era bem pensado e tratava de fazer o melhor. Procurava apreciar, digerir cada momento, cada situação. Ed e Val seguiram pela última sequência de negativos e tetos com cordadas duras e trabalhosas. Ed teve de limpar uma cordada à noite, com emoção redobrada. Ao Sergio tocou uma das cordadas mais trabalhosas que tomou um dia inteiro de trabalhoso A4. Val tocou a última cordada pela rocha negra, difícil, exposta e obrigatória onde teve de usar muita criatividade para subir um tramo de rocha decomposta e vegetação sem consistência. Com alguns cabelos brancos a mais chegou ao topo do Tepui. Foi uma alegria geral. Nesse dia Yupi preparou uma torta incrivelmente saborosa. No outro dia acomodamos e descemos todo nosso equipo emendando 700 metros de cordas e assim depositamos na base a maior parte de nosso equipo, livrando-nos, assim, da última petateada.

Saímos todos ao topo e foi muito bom poder tirar o arnes e simplesmente caminhar livremente depois de 17 dias de escalada, 14 na parede. O terreno no topo do Tepui é exótico, com fendas perigosas e formas raras das rochas, um caos de grotas e blocos disformes, terreno encharcado com uma vegetação única, bromélias exóticas, plantas esponjosas, carnívoras e pequenos arbustos retorcidos, um terreno difícil e perigoso de se andar. Com um pouco de chuva tudo fica alagado, a água não infiltra no solo rochoso, bolsões de água se formam por toda parte. Tomamos um banho de rio na chuva e descansamos um dia inteiro. Descemos no outro dia por uma linha de rapeis à esquerda da parede do Salto. Voltamos à Canaima resolver tramites com o pessoal do parque — nossa escalada era ilegal, mas tudo ficou resolvido—, e pudemos então descansar no conforto de uma pousada, comer bem, tomar umas cervejas desfrutando de alguns confortos básicos.  Sentíamos uma fome constante, resultado do enorme esforço pelo qual havíamos passado e que custava ser sanada.

Imagens e sonhos com a escalada se tornaram constantes. Aos poucos pudemos assimilar o que havíamos passado, os muitos momentos que ficarão para sempre em nossas memórias. Foi um dos maiores desafios em minha vida de escalador, mais difícil e também o mais belo em muitos aspectos. Uma escalada espetacular, dura, séria e comprometida. Na ponta da corda a busca por uma boa fenda, uma eficiente proteção ou uma sólida agarra, buscar o melhor caminho naquele mar de incertezas num caos de blocos soltos onde sua própria vida estava em jogo, sua e de seus colegas, um jogo mental duro de jogar.

É difícil entender o que nos move a lançar-se a tais empreitas sabendo de antemão das provas que se vai passar. Esta busca pelos desafios que estas escaladas propõem soam como um alimento de que precisamos, um alimento ancestral, algo que em nossa vida civilizada, cotidiana, já se perdeu há muito tempo. Se pensado pela razão, pela lógica, não tem sentido, não há uma resposta coerente, mas é algo que buscamos e que está enraizada no fundo de nosso ser e somente experimentando para se ter a ideia do sentido.

Agradeço aos meus parceiros de escalada pela grande aventura que vivemos, pelo excelente astral que tivemos, ao Waldemar pelas iniciativa da escalada e à Edelweiss pelo apoio com cordas que nos garantiram  total segurança na escalada.

Maiores informações sobre esta e outras escaladas tepuieras se podem conseguir nos sites www.climtepuyes.com e www.niclewicz.com.br

José Luiz Hartmann, com fotos de Waldemar Niclevicz