O vento nos amontoa, isso é certo; nas cafeterias, na face sul do maxikiosco, em niponino com uma antares gelada e uma docena de empanadas, na cúpula amarilla, nas mesas do fogon, sob o toldo do bivaque, no platô do cume do pilar, o vento acaba por nos amontonar... sempre ele, este vento que não para e é forte muitas vezes te atazana, tira o sossego. 7 nós, depois doze, dezoito... venta pacas, enquanto se espera por ventos mais calmos vindos do sul desfruto cada empanada como se fosse a última, e com apetite.
Os dias passam a mil maravilhas entre boulders, pizzas, hack sack, empanadas, assados e escaladas nas redondezas, música boa no kiosco e uma variedade de cervejas artesanais para todos os gostos, estudamos o NOOA buscando pistas de melhoras no clima e prever as ventanas de bom clima, tudo decidido na cúpula amarilla.
Fabio vem com a nova previsão, ventana de 4 dias. Montamos as mochilas caprichosamente, tentando fazer as coisas pesarem menos e ocuparem menos espaço... “um escalador prevenido pesa por dois”. Eliminar tudo o que não seja fundamental, separamos um jogo de cams até o #5 e repetidos até o #3 mais stoppers e algum piton por se acaso e umas quantas costuras longas, sacos de dormir para todos... luxo e conforto, comida para cinco dias, dois bujões de gás e a mochila ficou enorme.
Irivan e Bonga chegaram a uma boa equação. "Quando mais é menos: mais roupa, mais conforto, mais peso, menos agilidade. Menos comida, mais fome, mais leve, menos conforto. Menos rack, mais leve, menos segurança, mais medo, mais rápido..."
Subindo ao passo cuadrado vão se rompendo os últimos laços com a pouca civilização ali existente, agora somos nós e a montanha. O gelo crepita sob as pontas afiadas do grampon, o reflexo brilha em meus olhos protegidos pelos óculos escuros, saímos pela manhã de piedras negras com a intenção de bivacar no glaciar norte do Fitz Roy para escalar o Pilar Goretta pela via Mate, Porro y Todo lo Demás, a descida ao gelo do outro lado é fácil e logo estamos no glaciar. Passamos apreensivos pelo cone de avalanches da Mermoz. Ali somos vítimas fáceis de uma avalanche.
Nuvens baixas cobrem o pilar, somente seu cume desafiador se percebe, buscamos um local de bivaque com um depósito de comida mas nada encontramos, subimos em direção ao corredor junto ao dedo, uma pequena agulha a meio caminho no seu col faremos nosso bivaque, custa ajeitar o local, mover uma pedras e ajustar pequenos blocos. Dormimos uma noite confortável, bem alimentados sob um céu de estrelas e a visão incrível do Fitz nos vigiando, custo a dormir com a visão, apreensivo com a escalada.
Saímos do conforto dos sacos de dormir com as primeiras luzes, temos de derreter gelo para água e um café, a subida até a base da via é mais empinada, sigo pisando firme para não escorregar no gelo duro da manhã. Em um pequeno platô deixamos duas botas, piquetas e grampons. Vestimos as sapatilhas, a subir rocha — e da melhor ‑, aderente e com boas fissuras. A via segue por um diedro principal bastante óbvio, porém em algumas partes pode se ter opções de sistemas onde pode se complicar, mas em geral a via toda é boa de proteger, mas alguns blocos soltos demandam atenção e cuidado.
Subimos rápido as primeiras cordadas, mas logo a parede empina e exige mais. Muitas fissuras paralelas e boas colocações possibilitam uma escalada confortável e bonita. A cada cordada o visual se amplia e avistamos novos horizontes. Sigo na ponta quente da corda por umas sete cordadas mui divertidas e passo a ponta ao Fabio. Tratamos de fazer tudo o mais agilizado possível, Fabio passa em artifo ligeiro a cordada mais dura com um pequeno pêndulo, e seguem cordadas de ótimas fissuras quase sempre com pequenos platôs para montar as paradas. Chegamos ao platô que será nosso bivaque esta noite, fixo a corda e vou derreter gelo para água. Ermínio chega assustado, uma pedra lhe acertou o ombro e por pouco não tivemos um acidente. Pôr de sol do platô, muita hidratação, comida e a dormir um sono reparador, amanhecemos com um sol confortável, desfrutamos as cores do amanhecer.
Nativo e Erminio pegam a ponta. Do platô para cima sistemas de diedros proliferam e pode se subir por qualquer lado, fácil complicar a vida, enquanto escalam derretemos gelo para ter suficiente água para o longo dia de céu azul. No meio da tarde chegamos ao cume do pilar, abre-se visual para o leste, agora podemos ver o lado de onde vem o sol. Arrumamos nosso bivaque e estudamos a parede a seguir, um canal meio gelado com um sistema de fendas à direita. Descansamos o resto da tarde, comemos e nos hidratamos com um pôr de sol incrível tingindo o granito de cores douradas. Noite de estrelas e apenas umas poucas luzes de Chaltén crepitando no vale, difícil dormir com a torre final do Fitz espreitando nossos sonhos. Antes de amanhecer o frio se faz notar, as garrafas de água congelam se não estiverem junto no saco de bivaque. Depois do café rapelamos do cume do pilar e deixamos fixa uma de nossas cordas para o retorno.
A via toda conta apenas com um stopper e algum friend enroscado; nenhum piton nem chapa. Do pilar até ao cume serão seis cordadas mais delicadas e expostas com caídas de gelo na primeira parte. Fabinho se vira perfeitamente com algumas fendas geladas, temos um par de crampons e uma piqueta pequena que o Nativo usa para a última cordada no gelo. As nuvens que vinham se agrupando ao longo do dia envolvem a montanha e o frio começa a pegar, cruzar esta cordada sob o gelo em diagonal e de sapatilhas se torna curioso mas depois de algumas patinadas sobre o gelo liso acaba a dificuldade, o terreno tomba e podemos nos desencordar.
Podemos ver o cume muito próximo, uma emoção invade, um visual que não se espera, já não podemos subir mais, tudo está abaixo de nós, as nuvens abrem e podemos apreciar um visual incrível, as muitas agulhas e montanhas, o gelo continental, a estepe seca, um presente inesquecível, nos reunimos no cume onde encontramos a Luciana e Hormiga, que haviam escalado pela via Afanasieff. Ficamos pouco tempo no cume, as nuvens voltam a nos envolver e nos deixam apreensivos. Resolvemos descer em seguida, e agora somos seis nos rapéis.
Rapelar por onde acabamos de passar deveria ser algo simples, mas as perspectivas mudam e tudo parece diferente, o nevoeiro confunde, aquela dúvida se estamos certos, parece outro lugar, descemos apreensivos até visualizar o pilar e conferir a rota de descida, chegamos sem problemas ao bivaque no cume do pilar para mais uma noite de muitas estrelas e mentes agitadas, fica difícil dormir olhando o Fitz bem na cara e milhares de estrelas, confortável e seguro na própria ilha de pensamentos... Amanhece um sol fantástico sob um mar de nuvens, um incrível espetáculo presente da mãe natureza, somos uns privilegiados... degustamos cada segundo, cada raio de sol na pele, cada tom de cor e cada momento único.
Dois stoppers firmes em uma fenda larga formam nossa primeira estação de rapel pela face leste do pilar. Deixamos para traz nosso refúgio e nos lançamos no desconhecido desta parede. No segundo rapel uma corda se agarra e temos de escalar para soltar. Seguimos rapelando, desfrutando da beleza desta parede incrível que Renato Casarotto teve o privilégio de escalar no passado. Antigos equipos sinalizam sua passagem.
Chegamos ao bloco empotrado após dezenas de rapéis sem maiores complicações, seguimos os rapéis pelo canal, mais apreensivos com os blocos soltos. Acabamos os rapeis após a rimaia, pegamos nossas coisas e seguimos a descida ao glaciar e logo ao passo cuadrado, a salvo fora dos perigos inerentes a essas mutantes montanhas.
Recolhemos mais alguns pertences em piedras negras e descemos chumbados de peso. Chegamos às três da manhã na estrada a buscar um transporte à Chaltén. Fabio consegue uma carona e o Luisi vem nos buscar. Ducha e cama, ou melhor carpa e sonhos, mãos ardendo e a mente ainda escalando.
O fascínio, a atração destas montanhas, é como um chamado: ao mesmo tempo em que a montanha te cativa, estimula os instintos mais primordiais, atiça a curiosidade, o ambiente selvagem e potencialmente perigoso em constante transformação te cobra, exige e faz ver como frágil se é perante estas montanhas colossais. Escalar estas montanhas implica em expor-se a tremendos riscos que não se podem evitar, inerentes ao terreno, ao ambiente. O pilar norte do Fitz Roy é formado por uma excelente rocha que proporciona escalada livre de alta qualidade, uma das melhores e mais desfrutáveis escalada que já fiz.
Valeu Erminio, Fabinho e Nativo pela super escalada, pelo bom que passamos e pelo privilégio que tivemos.
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José Luiz Hartmann